Rui Marques Araújo
Nesta crónica pretendemos avançar, sob a luz de um horizonte teológico, para a explanação de alguns meandros que, devido a práticas esotero-ocultistas, nos distanciam da religião e do cristianismo, que nos enfraquecem na relação com Deus. Dada a frequência cada vez maior deste tipo de práticas, torna-se conveniente, e até mesmo urgente, fazer uma breve alusão a este fenómeno dentro de uma ótica cristã. Não podemos, de algum modo, esquecer que para muitas pessoas este fenómeno revelou-se e revela-se ainda um verdadeiro drama, tanto pela presença e existência como pela experiência. Por isso, só uma atitude se mostra justa e devida: a preocupação atenta. Porém, esta atitude deve ser sempre compreendida com e na esperança de clarificar os cenários que se encontram misturados e enevoados, onde a fé se desenha e pinta.
Na verdade, olhando para a praxis do ocultismo, assinalada pelas crenças e práticas rituais, relacionadas com forças esotéricas (conhecimentos reservados), que se estendem desde a alquimia até à bruxaria, podemos constatar que “quase todas as religiões apresentam sequelas periféricas de ocultismo”[1]. De facto, a religião, sendo um fenómeno comum a todas as culturas primitivas, foi sempre alimentada por formas de crença e de culto marcadas fortemente pelo “primitivismo cultural, como o animismo, a magia, o politeísmo”[2]. Observando, concretamente, na bacia do mediterrâneo, as religiões arcaicas, observa-se o recurso, para além dos procedimentos já mencionados, a práticas de adivinhação, dos oráculos, da quiromancia, da leitura do futuro e do conhecimento da vontade dos deuses. Não obstante esta conduta, as religiões já tinham em comum, ora mais vaga, ora mais definida, a crença num Ser Supremo, cujo rosto é invisível, mas do qual todo o homem e o mundo dependem[3]. Todavia, antes ainda da experiência religiosa, alguns estudiosos do fenómeno religioso consideram que se deve admitir algo mais primitivo, ou seja, a experiência do sagrado, entendido como “o advertir espontâneo, acessível a qualquer um, de qualquer coisa de imenso e infinito que domina o mundo e envolve todas as coisas no mistério do ser, causando em nós espanto e admiração”[4]. O ser humano aparece já, na experiência religiosa, como animal religiosus.
À vista disso, nesta e noutras temáticas, encontramos sempre o fator Homem em jogo, uma vez que o Homem é o principal fator, a causa primeira de todos os fenómenos. Em tempos remotos, o Homem foi achado como centro do mundo. Com o passar dos tempos, o abandono de visões homocêntricas acabou por reduzir o Homem a uma modesta e insignificante partícula, de uma imensa poeira cósmica[5]. Contudo, num mundo onde podem existir outros seres de inteligência e discernimento superiores ao Homem, porque haveria de ser ele o centro? Efetivamente, esta é uma questão que deve ser aceite e admitida por todos.
Porém, no mundo em que vivemos temos que admitir e aceitar a soberania do Homem, que nos força a conceder-lhe a primazia e o controlo de muitos fenómenos aí vividos. Na verdade, este começou por se sentir um produto de tudo o que o rodeava, mas com a lenta evolução orientada pela sua inteligência, pouco a pouco foi dominando todas as potências que o subjugavam.
Não obstante a centralidade e intelecto do Homem e o meio em que está inserido, reparamos que, nos tempos primitivos, debaixo de uma atmosfera vivencial predominantemente mágica, o Homem deixou-se esmagar por terrores e superstições, crendices e ingenuidades, que marcaram todos os seus atos. Porém, era previsível que, séculos depois, com o progresso da matéria e das ideias, a par do evoluir da técnica, essa atmosfera mágica desaparecesse do seu horizonte vivencial. Mas terá desaparecido realmente? “Aceitando que os arquétipos do inconsciente colectivo marcam permanentemente a alma do Homem actual”[6], devemos aceitar que, no fundo desse mesmo Homem, o património mágico dos primeiros tempos encontra-se cinzelado.
A magia pesou e pesa, concreta e objetivamente, na vida do ser humano, independentemente de ser intrinsecamente prejudicial ou não. Como a condição humana é por excelência débil e limitada, tem associada a si uma incomensurável ambição de bens terrenos e sobrenaturais que faz com que a magia se degrade na feitiçaria e bruxaria, dando condições favoráveis para o aflorar de feiticeiros, bruxos e magos. Estes agentes da magia, tentando captar e pôr ao seu serviço certos fatores dinâmicos concebidos como potências (demónios, espíritos e deuses)[7], procuram dominar ou até mesmo possuir o poder de Deus. Esta situação está bem descrita no livro do Génesis 3, 5, quando a serpente diz à mulher: “Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal”. Na realidade, o centro deste relato encontra-se na problemática da pretensão humana em ser igual a Deus, ou seja, com “autonomia e imunidade frente à morte”[8], rejeitando o estatuto de criatura, usurpando o lugar de Deus como criador supremo, único e verdadeiro e afirmando a sua auto-suficiência, que rompe com a harmonia e a comunhão com Deus.
Assim, estas considerações preliminares permitem desvelar um pouco do nosso itinerário teológico. Efetivamente, há três aspetos que não podemos de todo descurar, a saber: a religião que, praticamente, está na base de todas as culturas; o ser humano, que mal tomou consciência de si, se deu conta da sua limitação ante um Ser Superior e da sua necessidade de saber de onde vem e para onde vai e, por conseguinte, sente falta de saber o que está no fundo do mistério que envolve o mundo e a vida. Daí afirmar esse Ser Superior que, em última instância, dá sentido a todas as coisas. Por último, a magia e a superstição que, coexistindo, acompanham, desde os tempos antigos, o ser humano e a própria religião, mesmo que em algumas ocasiões esta coexistência não fosse tão pacífica. Estes três aspetos, sob a diretriz da Sagrada Escritura e dos Padres da Igreja, ajudar-nos-ão a levantar os problemas que o ocultismo, nas suas mais variadas manifestações, inflige na religião cristã e no cristão.
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[1] Esperanza Bautista, Aproximación al estudio del hecho religioso, Ed. Verbo Divino, Navarra, 2002, pág. 153.
[2] Jorge COUTINHO, op. cit., pág. 21.
[3] Cf. Jorge COUTINHO, op. cit., pág. 21.
[4] Marcelo Sanchez Sorondo, «In che cosa credono quelli che non credono?», in Aquinas, nº XLI, fas. 3, (Roma 1998), pág. 469.
[5] Cf. Pedro José GONZÁLEZ-QUEVEDO, op. cit., pág. 8.
[6] Pedro José GONZÁLEZ-QUEVEDO, op. cit., pág. 9.
[7] Idem, pág. 10.
[8] Juan Guillén Torralba, «Genesis», in Santiago Guijarro Oporto y Miguel Salvador García (org.), Comentario al Antiguo Testamento I, Col. La casa de la Biblia, Ed. Verbo Divino, Navarra, 2008, pág. 50.