Rui Marques Araújo
Nesta crónica, atendendo à relação pessoal do Homem com o sagrado ou à sensibilidade deste para o transcendente, iremos notar que a religião, ao longo dos tempos, foi chamando a si uma responsabilidade ética e moral, que careceu do ser humano um apadrinhamento de padrões comportamentais, conforme os ditames contemplados na religião.
Entretanto, recobriu-se a religião de um caráter popular que, não sendo ordenado e funcionário do sagrado, viveu e vive intensamente as ideias religiosas, ao ponto de as tornar práticas comuns à comunidade que vive e celebra a fé. Esta religiosidade popular permite que o comum dos mortais expresse a sua fé em gestos coletivos e rituais espontâneos, onde se manifesta a criatividade. Ela está desenquadrada de cânones e liturgias, onde as gentes são como que removidas do anonimato, assistindo-se a um dilacerar de ideologias dominantes das estruturas sociais. De igual modo, a liturgia, que daqui brota, acaba por, em função de símbolos, sofrer uma reconversão própria que, não só mostra o povo como protagonista da própria fé, como não justifica ordens estabelecidas[1]. Tudo isto é imagem de uma religiosidade que abotoa do coração, mas que não é suficiente para habilitar a religião e o ser humano de imunidade face às superstições, sincretismo e elementos pagãos. “O sagrado e o profano, o religioso e o supersticioso andaram sempre muito interligados na crença popular”[2], sendo que a sua triagem é muito difícil de fazer.
Não é de todo fácil analisar este fenómeno, devido às suas profundas raízes semeadas na cultura popular, como há pouco referimos. O conceito de superstição, sendo complexo e vasto, aponta para ideias e comportamentos já ultrapassados ou reminiscentes, que sobrevivem como restos de mentalidade e atitudes do passado. Trata-se de uma certa ideia de sobreposição, onde os resíduos de antigas crenças religiosas, outrora mitigados e acondicionados, se sobrepõe à religião oficial, como seja o caso do ocultismo, satanismo, uso de amuletos (olho turco) ou talismãs e ainda o uso abusivo e perverso de relíquias, do escapulário, Agnus Dei e medalhas[3], que gozam de muitos desígnios, menos do desígnio de Deus.
Nas várias culturas, com destaque para a cultura helénica, o medo dos demónios e a crença em forças inexplicáveis que ameaçavam a espécie humana, e o poder sobre a natureza já demonstrava um desvio do religioso e o hábito, por parte do ser humano, com os seus medos e crendices, de conferir a outras pessoas e objetos poderes de tipo sagrado/ mágico, que em última instância não passavam de meros frutos do imaginário humano, pois tais pessoas e objetos não possuíram nem possuem tais características. Por conseguinte, a superstição passa a ser reflexo de um pensamento primitivo e ilógico, onde o Homem, ser finito e contingente, diante da angústia, do medo e da impotência, julga e procura controlar de qualquer modo as forças da natureza, isto é, o destino e os acontecimentos, com pensamentos e práticas obscuras. Posto isto, esta mentalidade mágica e supersticiosa foi sempre mais visível nas populações rurais, devido ao facto de estas dependerem e contactarem mais de perto com a Natureza. Contudo, nos tempos que correm deparamo-nos com uma mudança de paradigma, ou seja, um surto notável de superstição nas populações mais citadinas.
Na verdade, entre nós é sabido que quando “sai a religião pela porta, entra a superstição pela janela”[4]. A superstição recobre, assim, a generalidade das formas alternativas à religião, presenteando-nos com uma grande e rica expressão que, desde as rezas e rituais, crenças em sinais ou ações misteriosas e ocultas e práticas de magia, apresenta uma grande oferta para todos os gostos e feitios; desde os gatos pretos, as sextas-feiras treze, o mau-olhado, os feitiços, onde o azar espreita e o medo aumenta. Na prática, a este fenómeno está subjacente, por um lado, o confronto do ser humano com forças que de modo algum compreende; por outro, o desejo permanente de superar o mundo real, com fuga para outro mundo. Todos os povos e culturas preservam resquícios de uma mentalidade mágica que, nos vários aspetos da vida e da realidade, vêem características que ultrapassam a natureza.
Um grande número de pessoas vivem aterrorizadas com o que se sucederá depois da morte, com os espíritos e com os demónios; são problemas que as seguem e que, muitas vezes, acabam por provocar um medo tal, que elas chegam mesmo a fazer a sua profissão de fé em toda esta realidade. Todavia, quando estes crentes se encontram com pessoas que se declaram céticas e indiferentes a estas prerrogativas apresentam prontamente a resposta: – Não acreditas porque nunca precisaste! Sem sentido nem coração, mas com angústia e medo a pessoa está, no entender de Elias Couto, predisposta a acreditar em feitiços, possessões ou assombrações[5]. Estas pessoas tornam-se frágeis e porosas, pois não só se deixam influenciar pelos vendedores do oculto como se deixam atingir pelos produtos que estes vendem, feitiços e vingança dos espíritos. A pessoa sofreu estas mudanças na vida porque acreditou e, por isso, precisou. Germinando do interior da pessoa, a superstição vai crescendo na medida da nossa disponibilidade para acreditar. O mesmo não acontece com aqueles que, dotados de um espírito e atitude críticos e pouco dados a crendices, são imunes a todo o tipo de males que brotam de tais práticas.
Perante tais factos, devemos ter em conta que todos, de um modo ou de outro, podemos resvalar a nossa fé cristã para estes terrenos baldios da superstição, infestos à fé cristã adulta e responsável, onde confundimos o que não deve ser confundido. A superstição, entendida como deturpação de teor mágico e idolátrico do comportamento religioso, traduzido “frequentemente na multiplicação de regras, no formalismo dos ritos, na atribuição de poderes sagrados a objectos «religiosos», ou no recurso ao bruxedo e ao curandeirismo”[6], pode “afectar o culto que prestamos ao verdadeiro Deus. (…) Atribuir só à materialidade das orações ou aos sinais sacramentais a respectiva eficácia, independentemente das disposições que exigem, é cair na superstição”[7]. Por sua vez, esta enraíza-se em pessoas que se encontram psicologicamente débeis e alimenta-se, sobretudo, da ignorância religiosa. Não será por acaso que, na atualidade, se encontra grande número de comportamentos superficiais e sem teor de verdade entre pessoas com uma cultura geral relativamente ampla, mas que do ponto de vista religioso se ficaram pela infância, manifesta num falso culto ao Deus verdadeiro. Logo, a superstição não só se afasta da verdadeira religião como da ciência. Nesse sentido,
São João Crisóstomo pedia aos homens e mulheres que evitassem absolutamente os agoiros e as práticas supersticiosas, que não passavam e passam de “desvarios dos que ainda permanecem no império do erro”[8], e pensassem somente no acolhimento do Rei do Universo. Mesmo assim, o Sínodo Nestoriano de 554 exortava a que “quando algum daqueles que caíram nesta grande enfermidade (superstição) se converter, ofereçam-lhe, como meio de cura, tal como àquele que está fisicamente doente, o óleo da oração benzido pelos sacerdotes e a água da oração”[9].
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[1] Cf. R. Lopes da Costa, «Religiosidade Popular: fenómeno, mística e o símbolo», in Revista Diversidade Religiosa, v. 1, nº 1 (2014).
[2] J. Carneiro da Costa, «A criança em crenças populares, Hoje: uma questão pastoral», in Revista Cenáculo, v. XIX, nº 113 (1990), pág. 37.
[3] J. H. Oliveira Barros, Não tenhais medo, Ed. A. O., Braga, 20052, pág. 30.
[4] Jorge COUTINHO, Caminhos da razão no horizonte de Deus, Ed. Tenacitas, Coimbra, 2010, pág. 51.
[5] Cf. E. M. Couto, A nossa terra e suas devoções: perspectiva histórica e pastoral, Ed. Companhia Editora do Minho, Esposende, 2002, pág. 379.
[6] M. Franco Falcão, Enciclopédia Católica Popular, Ed. Paulinas, 2004, pág. 487.
[7] CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, Ed. Gráfica de Coimbra, Coimbra, 1993, 2111.
[8] Jean Chrysostome, Huit catéchéses Baptismales, Ed. Du Cerf, Paris, 2005, I, cap. 39.
[9] Sínodo Nestoriano