Regina Sardoeira
O homem entra pesadamente e faz ranger a porta envelhecida; o seu andar é tímido e mal ousa erguer o olhar cansado. Numa das mãos traz uma mala velha, esburacada e miserável – coçada pelo tempo; na outra amarfanha um pobre casaco de cor duvidosa, aperta-o convulsivamente de encontro ao peito, como se se tratasse de um tesouro querido.
O homem traz a morte no olhar e nos passos, nas roupas desfiadas, na mala pendente. O fato amarrotado pendura-se-lhe no corpo débil e, dentro dos sapatos, largos demais, os pés agitam-se penosamente. Os cabelos ralos mostram fios de prata, anunciando a velhice precoce e uma barba incerta enche-lhe o rosto de sombra.
Após alguns passos furtivos, o homem pára e olha à volta: é muito cedo ainda, a manhã mal desperta nos cumes distantes. Um céu azul escuro ostenta a luz das últimas estrelas e as janelas abertas deixam entrar uma brisa cálida. Mas o homem tem frio, tem o frio da alma a entorpecer-lhe os membros.
A estação está deserta àquela hora. Apenas um velho dorme enrolado num banco e o seu ronco corta a noite que se extingue lentamente.
O homem pousa a mala no chão, com carinho, receosamente, e senta-se sobre ela, a medo, apertando ainda com mais força o casaco velho. Senta-se e espera, olhando o chão lajeado e frio. Está imóvel, tão imóvel que parece morto ou, pelo menos, mergulhado no mais profundo dos sonos. Mas não. Ele tem os olhos abertos e mergulha-os no vácuo ou no infinito. Ele tem as mãos crispadas e enterra as unhas na carne, enquanto, convulsivamente, estreita o seu tesouro contra o peito.
A manhã clareia, de súbito, mas o homem continua de olhos fixos no lajeado e não se afasta quando um raio de sol lhe vem brincar com os cabelos; nem sequer desperta quando a estação se povoa de vozes e de risos.
O homem permanece sentado em cima da sua mala pobre, no meio da estação, agora inundada de luz; permanece imóvel mesmo quando a multidão o empurra e os olhares dardejam a sua miséria. Mas não está morto, nem dorme; apenas se mantém ensimesmado na dor.
Um silvo de comboio atroa os ares, depois outro e outro ainda.
O homem reage lentamente e acorda do torpor mortal em que se lançara. Levanta-se, penosamente, e parece mais débil ainda, com o fato mais amarrotado, mais sujo, mais indefinido, agora trespassado pela luz radiosa da manhã. No entanto, algo brilha naquele todo pobre e baço, algo que só agora a luz teve poder de revelar.
Pendurada no pescoço magro, debaixo de um colarinho lamentável, o homem ostenta uma magnífica gravata. É vermelha, dum vermelho quente, e listas douradas dão-lhe um fulgor bizarro; o homem ostenta-a, como um troféu arrancado à batalha; mas, todo aquele brilho torna mais miserável ainda a terrível decadência do seu ser.
A multidão pulula à sua volta e ninguém o vê. Ninguém vê o dorso corcovado que apanha do chão a mala velha; ninguém vê o olhar cansado que, receosamente, se refugia na sombra.
O homem está só. Só, entre os que partem e os que vêm, só entre os que dizem adeus com lágrimas e os que se abraçam com risos. Mas, tanta solidão torna-lhe menos duro o peso da sua miséria: ninguém o vê, ninguém lhe presta atenção e, no entanto, ele mal ousa erguer os olhos, com medo da luz e da alegria dos outros.
Agora, que está de pé, caminha ao acaso, ainda mais amachucado, ainda mais pobre. Pára, frente a um guichet, e murmura debilmente qualquer coisa. Uma voz ríspida invectiva-o por detrás do vidro; ele afasta-se, vencido, e tenta a sorte nas muralhas envidraçadas que se alongam pelas paredes: todos o expulsam violentamente.
Acobardado, abatido, ele vai então colocar-se no último lugar de uma fila que vagamente lhe indicam. Aí fica, como que adormecido, indiferente à paisagem que se desdobra à sua frente, do outro lado das janelas abertas, indiferente à alegria, ao movimento, à vida. Quando chega a sua vez, é interpelado brutalmente; estremece, receoso, dolorido, como cão batido. Depois, febrilmente, desdobra o casaco que mantém apertado contra o peito e tira do bolso três notas velhíssimas, três farrapos sem cor. Com as mãos trémulas, estende-as até ao homem rígido que o observa e, pela primeira vez, há um clarão altivo no seu olhar. Pela primeira vez, levanta a fronte e a sua voz é quase clara:
– Um bilhete! Um bilhete… – e o resto da frase perde-se num murmúrio.
Do outro lado do vidro ouve-se uma imprecação e uma mão feroz agarra as notas, quase as arranca daquele ser que treme. Estendem-lhe o bilhete e expulsam-no com um olhar de desprezo.
O homem sai, outra vez derrotado. A gravata vermelha é agora mais viva na sua cor de sangue e ostenta o brilho como um triste escárnio. O homem tem os olhos marejados de lágrimas e mira o bilhete libertador com um espanto triste. Ele não quer partir, não quer entrar no sorvedouro humano que o engolirá, decerto. Mas também não quer ficar, principalmente agora que tem um bilhete nas mãos e das suas velhas notas nenhuma resta no casaco sujo. Principalmente agora que cortou as amarras, ele tem que partir e caminhar para o desconhecido.
E vai. Maquinalmente, arrastando sempre os passos, entra num comboio e aninha-se a um canto da carruagem mais sórdida. Põe a mala sobre os joelhos e espera; ao mesmo tempo, um vaivém contínuo, um vozear áspero vão enchendo a manhã clara de movimento. Mas ele não vê, não ouve, não sente: mantém-se entorpecido, alheio às cores, às vozes e aos risos , mergulhado num esquecimento vizinho da morte.
Agora, o comboio rola e o mundo em que penetra é doce e belo: são rios que murmuram, árvores que se agitam, crianças que levantam os braços como se fossem flâmulas e correm de cabelos ao vento. Mas o homem não vê, não olha uma única vez pela janela, nem sequer levanta a vista embaciada.
Finalmente, o comboio pára numa grande estação.
Sente-se que é o centro de uma metrópole, dado o vaivém ininterrupto de seres e bagagens e por um não sei quê de subtil que perpassa no ar metálico, cheio de vozes e de ruídos de máquinas.
Sentado no seu canto, o homem continua fechado numa dor teimosa, que dir-se-ia uma afronta à vida estuante vibrando para lá da janela. Dá vontade de chegar junto dele e gritar: Acorda, homem! Despe os andrajos, arranca essa fita ridícula que enrolas no pescoço, atira fora a mala e os trapos, lava a cinza desse rosto e vem viver! És novo ainda: para quê esse corcovar de velho, essas rugas de angústia? Vamos, olha para a frente, mistura-te com essa gente febril, procura o teu caminho!
Mas a verdade é que ninguém grita o «Abre-te Sésamo!» e o rochedo permanece fechado e duro.
Os minutos passam. Despertando do torpor, o homem levanta a vista. Contempla depois o bilhete que segura, meio rasgado, entre as mãos e compara o nome impresso no pequeno papel com as letras vivas estampadas na parede branca do edifício. Olha várias vezes, como se não acreditasse e só depois se levanta, a custo; cambaleia e volta a sentar-se. Por fim, abandona o compartimento, desce os degraus da carruagem e pára na plataforma.
É um espectáculo confrangedor, esse homem e essa mala na azáfama colorida da magnífica estação. Mas quem se preocupa com ele, quem se abeira daquela imagem de miséria com um gesto, ainda que ténue, de carinho? Ele também não o pede, o nosso vagabundo.
Como um sonâmbulo, atravessa o recinto e sai para uma enorme praça rodeada de edifícios gigantescos: o trânsito desliza e deslizam as pessoas e a vida é um rio sem foz, fluindo ao acaso sem saber por onde. Então, ele dá uns passos hesitantes: pesa-lhe a mala rota nos dedos enfraquecidos.
De repente, à mistura com o ruído das máquinas e o sussurro da multidão, soa no ar, límpido como cristal, a voz melancólica de um sino de igreja.
Sobressalta-se o homem e o susto prega-lhe, de novo, os passos no chão. Mas, à terceira badalada, uma decisão ganha alento naquele corpo frouxo e ele começa a subir a praça em vigorosas passadas. De vez em quando, choca com os outros transeuntes, mas nem por isso desiste ou abranda o vigor da caminhada – quase corre, com os ouvidos atentos ao apelo do sino: é a linguagem universal a clarificar-lhe os pensamentos.
Exausto da corrida, o homem chega ao primeiro degrau da enorme escadaria da catedral: por ali esvoaçam pombas e o silêncio reina, imperioso, agora que o sino se calou. O homem começa a subir, vacilante, olhando em frente e muito para cima as torres imponentes; e então, as portas abrem-se, e uma multidão festiva começa a deslizar pelos degraus.
Outra vez cobarde, o homem afasta-se, encosta-se ao muro, para não ser atropelado por aquele onda viva: tudo é garridice, fausto e alegria, desmentindo a toada melancólica do sino. Ele está como que estremunhado, encostado ao muro que ladeia a vasta escadaria e é ali muito mais estranho que os pombos em contínuo saltitar entre as pernas da multidão.
Fica assim, naquela postura de humildade confusa, durante alguns instantes. De repente, alguma coisa lhe lembra que o faz agitar-se. Sai, lentamente, do canto a que se tinha acolhido, pousa a mala, avança alguns passos e coloca-se, decididamente, à frente da multidão. Olha aquelas pessoas bem vestidas com um sorriso sarcástico que elas não vêem. E só então baixa os olhos, estende a mão e murmura a linguagem universal dos mendigos.
Se fordes um dia a essa enorme cidade e se, por acaso, vos lembrardes de visitar a catedral, procurai entre as pombas: lá o vereis, sempre de olhos baixos, murmurando lamentações e estendendo a mão descarnada e suja… e vereis também, entre os farrapos negros do casaco, cintilando de forma bizarra, a gravata do esplendor perdido.