Regina Sardoeira
Há dias assisti, compungida, ao abate de um vetusto pinheiro manso, que se erguia, ali ao fundo, sobranceiro à estrada que, de Geraldes, conduz ao centro de Amarante. Dois anos antes, aproximadamente, haviam derrubado outro gigante, um pouco mais acima, na mesma rua. E o meu horizonte perdeu referências.
Agora, dos três habitantes centenários desta zona, resta um.
Eu não sei a quem pertence este último e imponente pinheiro manso, integrado que está, harmoniosamente, no terreno exterior comum do edifício em que vivo. Acreditei, até agora, que me pertencia um pouco, não só por ser um elemento deixado pelo arquitecto num terreno relvado, aqui mesmo, dentro do espaço ajardinado deste prédio, mas também porque é parte intrínseca da vista que desfruto das minhas janelas. Por isso, creio que o pinheiro é meu, não particularmente falando, como é evidente, mas na exacta medida em que é parte integrante do local que habito.
Porém, sei que certas pessoas gostariam de abater também este pinheiro, embora não me pareça que sejam a maioria dos moradores. Dizem que o pinheiro é velho e pode cair, molestando casas, automóveis, pessoas. Dizem que espalha caruma e que dá muito trabalho limpar. Dizem que as suas raízes provocaram pequenas lombas num pequeno percurso de acesso a uma das garagens e que essa trepidação prejudica os veículos.
Eu digo que o pinheiro, tal como os outros dois, estava aqui muito antes de haver estradas, casas e por isso pessoas. Digo que prefiro o pinheiro a tudo o resto, carros, casas, estrada e no limite, pessoas. Digo que nesta época em que vivemos, onde é visível, à saciedade, todo o conjunto de sinais do declínio da terra que, a longo prazo, dará origem à sexta extinção da natureza e portanto do homem, ninguém pode permitir-se derrubar árvores, sequestrar águas ( na medida em que há quem se considere dono dos rios, ribeiros e regatos), atear incêndios, fazer grandes plantações de uma só espécie em longos e largos terrenos, prejudicando a biodiversidade, abater animais, seja por que razão for ou segregar e condicionar espécies animais e vegetais, ditas inúteis ou daninhas.
Eu digo que “ninguém pode”. Mas logo vejo que de facto tudo isso pode ser feito, foi feito e vai continuar a sê-lo, pelo que seria melhor escrever, “Não deve!”: porque “nem tudo o que pode ser feito deve ser feito”, segundo as palavras certeiras de Roger Garaudy, em “Palavras de homem”.
Hoje mesmo quis aproveitar o clima ainda estival deste mês de Setembro a entrar no Outono e fui até um sítio, em Várzea, a poucos quilómetros daqui, onde o Rio Marão e as suas águas límpidas cai em varias cascatas formando uma bacia onde é possível nadar. Logo que cheguei dei conta de quão minguadas estavam as cascata e o pequeno lago e como a terra seca permitia apanhar sol muito mais à frente. Estive lá a meio de Agosto e gravei em vídeo o espaço extraordinário de que não suspeitava, com árvores a toda a volta formando uma espécie de cúpula, um sítio que sacralizei em mim desde o primeiro momento. Hoje repeti a gravação e pude comparar os dois cenários.
Não há dúvida acerca de uma transformação profunda que aconteceu na natureza e que não nos é, de todo, favorável. A grande questão é que tudo o que está a acontecer tem a marca da humanidade, fomos nós que, ao longo dos séculos, sujeitámos a natureza e tudo o que lhe pertence e nos permitiu ter um habitat a atentados terríveis. Não é de hoje, nem de ontem a devastação, foi um processo lento cujos sinais eram, primeiro, imperceptíveis, mas já lá estavam como marca indelével. Hoje, todavia, ninguém pode dizer que o nosso mundo, entretanto, não se alterou profundamente, porque é por demais evidente para ser ignorado como foi até há algum tempo.
No mesmo momento em que assisti ao brutal assassinato do pinheiro manso, alguém abria os ecopontos, ali perto, e depositava neles materiais recicláveis. E só pude entristecer-me ainda mais, pois constatei uma contradição óbvia entre quem ordenou o abate da árvore, prejudicando o ambiente, e aquele que punha o seu lixo de plástico, papel ou vidro para ser reaproveitado, pensando com esse acto estar a preservar a natureza. De facto, não está a fazer nada de importante para a natureza já que plástico, papel e vidro não são produtos naturais e os seus sucedâneos não o serão também depois de reciclados.
Acredito que, individualmente, poderemos fazer pequenos gestos no sentido de atrasar por algum tempo a nossa própria extinção ou pelo menos acreditarmos que estamos a fazê-lo. Mas ainda que todos os habitantes conscientes da Terra fizessem gestos com esse objectivo de pouco ou nada valeria.
A humanidade chegou a um modelo de vida no contexto do qual não é capaz de prescindir do supérfluo; e o supérfluo é quase tudo o que nos faz quotidianamente falta.
Nunca, como agora, as pessoas viajaram tanto para ir de férias. E sulcam os ares em aviões que, não só não pertencem à natureza mas a contaminam em grande escala e de muitos modos. Depois entopem os sítios para onde vão de tal maneira que lhes retiram a autenticidade, no atropelo de ver ruínas, monumentos, praias, na fúria de se acotovelarem em locais que talvez sejam belos mas cuja presença humana deturpa miseravelmente.
Eu nunca fui à Grécia, por exemplo, e gostava de ir, decerto. Não pela cidade de Atenas, não pela Acrópole, não pela ágora, pedaços descolados de um tempo que engendrou a nossa civilização ocidental, hoje, irremediavelmente perdido. Gostava de ir lá numa espécie de invisibilidade solitária e sentir o ar e o cheiro e o brilho do mar e a terra vermelha e as oliveiras e poder pisar os sítios onde viveram Sócrates, Platão e Aristóteles e todos os outros grandes sábios cuja terra natal já nem pertence à Grécia, mas ficarão para sempre na História como sendo gregos. Gostaria de sentir por que razão aquela atmosfera engendrou tantos e tão extraordinários homens há seis mil anos e mais.
Mas mesmo invisível e solitária talvez não conseguisse sentir o chão e o ar desse excepcional mundo de outrora, também ele contaminado pelos homens de hoje e pelos outros todos que os foram destruindo ao longo dos milénios.
Por essa razão, não vou e escassamente desejo ir, temerosa das multidões e do comércio, do esforço que é necessário fazer para chegar e receosa de voltar como vejo que muitos regressam : cansados, vazios e absolutamente iguais ao que eram quando partiram.
Comecei pelo recente abate de um dos “meus” pinheiros e fui alargando o âmbito da questão. Mas essa largueza na qual apontei somente alguns sinais do inevitável declínio da Terra, nosso único habitat, nem sequer seria necessária. Quem observar este caso isolado, em si mesmo, e o fizer com inteira noção do estado do nosso mundo, percebe nele um atentado irreparável e não apenas àquele lugar específico, cujo ar perdeu qualidade, mas ao todo de que ele fazia parte e cuja supressão o alterou. A seguir pensem nos milhões de casos isolados deste género ou de outros (a lista é infindável) e pode ser que logo entendam a importância daquele pinheiro (ou de uma formiga, uma mosca, uma erva, um rego de água (…)