Rui Marques Araújo
Tão antiga como o ser humano, a magia continua, ainda hoje, a coexistir com a religião, ao ponto de não termos como distinguir uma da outra de maneira absoluta. Esta coexistência tem-se revelado, ao longo dos tempos, tudo menos pacífica, existindo até uma certa implacável hostilidade à mistura, que estimulava, principalmente, os sacerdotes a perseguir os agentes da magia. A proclamada auto-suficiência dos mágicos, a arrogância deles face aos poderes mais altos e as suas despudoradas alegações, no que toca ao domínio e exercício de faculdades reservadas ao sacerdote, constituíam motivos suficientes para que os ministros de Deus se sublevassem. Tais alegações e atitudes eram consideradas pelos sacerdotes uma usurpação de prerrogativas que pertencem unicamente a Deus. Porém, outros motivos, não tão fortes quanto os supracitados, contribuíram para a cisão dos sacerdotes com os mágicos. Os sacerdotes professavam-se condutores apropriados, os verdadeiros intercessores entre o Homem e Deus. No entanto, estes interesses e sentimentos, que nutriam, eram mais uma vez causa para um verdadeiro colapso com os profissionais rivais, os mágicos, que pregavam, supostamente em nome de Jesus, um caminho mais suave, seguro e fácil para o sucesso[1], através de artes negras, diabólicas[2], face ao caminho escarpado e doloroso do verdadeiro favor divino.
Esta batalha contra a magia dar-se-ia tanto no púlpito, pelas pregações, como nos tribunais, pelas sentenças. A Igreja e os seus ministros advertiam, a longo prazo, para os malefícios que o comércio dos bruxos acarretavam para o crente, concretamente na vida espiritual, com a sua destruição definitiva, exortando para que, em tempos de necessidade, os crentes invocassem Cristo e deixassem de lado a ajuda dos agentes das artes ocultas. Todavia, tal não se sucedia. Na aflição, na perda e na doença, os homens viravam-se para a bruxa, deixando Deus de parte. Os ministros de Satanás, debaixo do seu domínio, surgem, para as pessoas ignorantes e perturbadas, em caso de infortúnio, perda ou outras calamidades, como solução, ao contrário dos ministros de Deus. No entanto este não é o retrato de toda a realidade, uma vez que, na idade média, foram vários os abades e priores que recorreram a bruxas para recuperarem objetos que se encontravam desaparecidos. Por seu turno, as antigas orações em latim, pertencentes ao depósito da fé da Igreja, e o simbolismo católico foram-se tornando particularmente populares no que toca ao uso nos ritos mágicos e em fórmulas encantatórias, tanto nas sessões dos magos rituais quanto nas técnicas de futurologia populares[3].
Apesar de todas estas barreiras temporais, a relação entre magia e religião revelar-se-ia, na história, algo inevitável, visto que a atitude mágica se encontra entrelaçada na atitude religiosa, representando, portanto, dois pólos do mesmo contínuo, inerentes ao próprio homem. Tal como a religião, a magia é uma tentativa de diálogo entre o homem e o Sagrado, que se apresenta como força, potência, poder oculto e misterioso, capaz de provocar ao mesmo tempo medo e fascinação[4]. Mircea Eliade, na perceção da diferença entre o Sagrado e o Profano, vê uma experiência fundamental da qual cresceu a magia e a religião, sendo que a religião ganha destaque, já que é uma experiência mais fundamental, porque cria uma cosmologia[5]. A magia pode ser, assim, considerada como um subtipo da religião, que se ocupa exclusivamente do Sagrado. Em contraste, James George Fraser, testemunha na magia a forma original da religião, o que leva a crer que o começo da religião está na tentativa mágica de dominar as forças misteriosas da natureza, e só depois é que os seres humanos se começam a aperceber da presença do sagrado[6]. Ainda,
“porque a origem da magia não se encontra na razão, mas no plano do sentimento, é possível encontrar também num crente uma dissociação do mesmo tipo: através da razão torna-se claro que apresenta actos cristãos nos quais sabe que Deus e a sua graça estão presentes; mas no plano do sentimento, o que funciona no cristão pode ser uma atitude de tipo mágico, ligada unicamente ao desejo de obter algo ou de fugir a uma força impessoal que teme”[7].
De todas estas considerações, podemos inferir que não é fácil determinar, com clareza, na história humana e nos seus meandros, a abertura para a fixação de uma separação entre a atitude religiosa e a atitude mágica. Na realidade, o aspeto cronológico, nesta reflexão, não assume um valor significativo. Com efeito, é necessário evidenciar os elementos que, pela sua ausência ou pela sua presença, possibilitam esta distinção. Será possível fazer uma distinção objetiva entre religião e magia? Esta pergunta, à primeira vista, pode parecer um pouco inocente ou mesmo irrisória. Porém, olhando bem para estes dois conceitos, e tudo o que eles encerram, deparamo-nos com a sua pertinência. Na verdade, a definição de magia revela-se difícil de concretizar, devido à diversidade de fenómenos que a formam. Contudo, parece que há um dado fundamental aceite pelos peritos para se proceder a esta distinção. Deve ser feita no plano antropológico e cultural, isto é, na forma como ambas as experiências se referem ao transcendente. Sendo assim, a “religião refere-se diretamente a Deus e à sua ação, de tal maneira que não existe nem pode existir nenhuma experiência religiosa sem esta referência”[8]; já a magia implica uma visão do mundo que crê na existência de um
“poder oculto, impessoal ou só vagamente pessoal, misteriosamente perigoso e não facilmente aproximável, mas capaz de ser encarnado, controlado e dirigido pelo homem. Como uma prática, a magia é a utilização desse poder para fins públicos ou privados que são bons ou ruins, ortodoxos ou heterodoxos, lícitos ou ilícitos, de acordo com os valores depositados nelas por uma sociedade específica”[9].
Como vemos, a magia possui unicamente a pretensão de exercer o controlo sobre um poder, através de práticas rituais, capazes de produzir automaticamente resultados. Daí que a sua relação com o transcendente ou a divindade contemple somente o horizonte da finalidade e do aspeto funcional, ao ponto de subordinar a divindade às forças e aos efeitos desejados. A magia, não admitindo nenhum poder superior a ela própria, afirma que pode mesmo forçar e invocar os espíritos e os demónios a cumprirem aquilo que lhes é pedido.
Com base nestes factos, é possível vermos as dissemelhanças capitais entre a magia e a religião. Estas (dissemelhanças) ocupam a relação dos seres humanos com o transcendente, no ângulo da atitude e da intenção. Por este motivo, a diferença fundamental entre a atitude e intenção situa-se nas premissas que declaram, por um lado, que a magia aceita o facto de os seres humanos poderem controlar o Sagrado e, por outro, que a religião vê Deus ou o Sagrado, não somente livre, como diferente de nós e, portanto, não influenciável, de tal forma que a resposta de Deus às nossas orações, ritos e rituais é desconhecida[10]. A religião, na sua praxis, quando visa de forma imediata efeitos temporais (o que não constitui a sua dimensão primordial), age sempre de forma serviçal, submissa a uma vontade diferente da própria, esperando que essa outra vontade conceda, de forma livre e pródiga, o que lhe foi solicitado. Isto nunca foi ou será uma ordem, mas antes uma súplica do filho, que se reconhece pecador, indigente e pobre, ao Pai misericordioso. Assim, Deus enquanto intimamente ligado à vida humana, à criação, é imanente, mas ainda é fundamentalmente diferente, ou seja, transcendente.
Na magia, os humanos entram em contacto com Deus ou com o sobrenatural sempre sob o signo do poder e da autoridade. Na religião há uma aproximação, com temor e reverência, da criatura face ao criador, a Deus. Se na magia há o intento de dirigir o sobrenatural, na religião há o desejo de caminhar ao encontro de Deus, a fim de construir uma relação com Ele. Este permanente e radical desejo libertará o ser humano da irracionalidade e do medo, garantindo espaço para o acolhimento e o amor pelo e com o Outro. A pessoa, confiando-se à auscultação de Deus, de onde tudo nasce, crê que Ele é o todo-poderoso, sem o qual nada pode e perante o qual, igualmente, nada pode. Por isso, esta relação estará sempre alicerçada no respeito, na diferença e, acima de tudo, no amor e na gratidão[11].
Porém, a religião, como fenómeno complexo, é vista a partir de Max Weber, através de três tipos de ideais, ou seja, a religião feiticeira, a sacerdotal e a profética. Assim, a religião sacerdotal, organizada em redor de um corpo de doutrinas, dogmas e éticas, vividos de forma eclesial, proclama a renúncia do ego, no sentido de se orientar para o divino e, consequentemente, para a salvação. Por sua vez, a religião feiticeira dá ênfase a este mundo, agindo em relação aos demónios e outras forças prejudiciais à vida e prestando mais atenção às necessidades imediatas do ser humano, onde procura desenvolver um conjunto de frágeis doutrinas, dogmas e códigos éticos. Já a religião profética consiste, na perspetiva weberiana, no único meio de quebrar o poder da magia e estabelecer um padrão racional de conduta[12].
Para além destes tópicos reveladores de um divórcio entre a religião e a magia, na ótica de Rudolf Otto, a religião, enquanto modo de relação com o Sagrado, aparece marcada por elementos de racionalidade, conjugados com aspetos de irracionalidade. Para este autor,
“os elementos irracionais que continuam vivazes e vivos numa religião preservam-na de degenerar em racionalismo. Os elementos racionais, com que abundantemente está saturada, preservam-na de cair no fanatismo ou misticismo, ou de aí permanecer, elevam-na à categoria de religião cultivada, de religião da humanidade”[13].
Por seu turno, na magia não se verifica este equilíbrio de contrários, uma vez que a categoria do irracional é a dominante. Aqui, ao contrário da religião, há a tentativa de captar e pôr ao serviço do Homem o poder de Deus, para assim controlar a criação. Esta vontade de poder, mais do que amar, está presente de um modo muito claro nas suas manifestações mais grosseiras, traduzidas na bruxaria e na feitiçaria. Nestas duas expressões já nem sequer se chega a conservar e observar a luminosidade própria da atitude mágica, dada pelo pressentimento do Sagrado, presente como mistério poderoso, mas o medo irracional e a crença acrítica[14].
Em suma, estes dois fenómenos, exibindo objetivamente uma distinção, quer na atitude quer na intenção, por vezes subjetivamente, patenteiam uma convergência em certos aspetos. Efetivamente, esta dura realidade não está muito longe da vida dos cristãos. A persistência da atitude mágica e, particularmente, das práticas supersticiosas, dela derivadas, sempre foram e serão um desafio para as religiões institucionais, nomeadamente para o cristianismo. A fé cristã vislumbra características de exclusividade, assumindo-se, para o ser humano, como mensagem libertadora alheada de qualquer aguilhão que sujeita. A isto podemos ainda acrescentar a própria adesão a Jesus Cristo e ao seu Evangelho, que “deve traduzir-se numa afirmação clara da dignidade da pessoa humana, livre e responsável perante Deus e os irmãos, e não joguetes de forças ocultas ou de destinos mais ou menos perversos”[15], que nada têm a ver com o autêntico sentido da religião e do autêntico culto a Deus.
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[1] Cf. Keith Thomas, Religião e o declínio da Magia, Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1991, pág. 214.
[2] Cf. Joseph Hall, Works, Ed. P. Wynter, Oxford, 1836, pág. 383.
[3] Cf. Keith Thomas, Religião e o declínio da Magia, Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1991, pág. 222-229.
[4] Rudolf Otto, Lo Santo. Lo racional y lo irracional en la idea de Dios, Ed. Alianza, Madrid, 1980, pág. 30-67.
[5] Cf. Marcea Eliade, Historia de las creencias y las ideas religiosas I, Paidós Ibérica, Buenos Aires, 1999, pág. 9-22.
[6] Cf. J. G. Frazer, O ramo de ouro, Ed. ZAHAR, Rio de Janeiro, 1982, pág. 80.
[7] Conferência Episcopal da Toscânia, Magia e demónios: Nota pastoral, Ed. Paulinas, Prior Velho, 2014, pág. 20.
[8] Conferência Episcopal da Toscânia, Magia e demónios: Nota pastoral, Ed. Paulinas, Prior Velho, 2014, pág. 17.
[9] Hutton Webster, Magic: A Sociological Study, Ed. Standford, Standford University Press, 1948, pág. 55.
[10] Cf. James Reaves Farris, «Ação pastoral e mágica: o Evangelho e a cultura à luz do sincretismo», in Ronaldo Sathler-Rosa (org.), Culturas e Cristianismo, Col. Ciências da Religião, Ed. Loyola, São Paulo, 1999, pág. 146.
[11] Cf. E. M. Couto, A nossa terra e suas devoções: perspectiva histórica e pastoral, Ed. Companhia Editora do Minho, Esposende, 2002, pág. 378.
[12] Cf. James Reaves Farris, «Ação pastoral e mágica: o Evangelho e a cultura à luz do sincretismo», in Ronaldo Sathler-Rosa (org.), Culturas e Cristianismo, Col. Ciências da Religião, Ed. Loyola, São Paulo, 1999, pág. 146-147.
[13] Rudolf Otto, O Sagrado, Ed. 70, Lisboa, 1972, pág. 183.
[14] Cf. E. M. Couto, A nossa terra e suas devoções: perspectiva histórica e pastoral, Ed. Companhia Editora do Minho, Esposende, 2002, pág. 378.
[15] E. M. Couto, A nossa terra e suas devoções: perspectiva histórica e pastoral, Ed. Companhia Editora do Minho, Esposende, 2002, pág. 378.
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