Cultura, Literatura e Filosofia

AS MINHAS MULTIDÕES

Regina Sardoeira

Por detrás das montanhas, outra montanha há e por detrás dos sonhos, outro sonho. Revejo-me nesta imensidão de sequências onde o fim é sempre o princípio, e o princípio o sentido da caminhada que nos conduz ao centro, numa circunvolução excêntrica, onde o eu e o nós se religam em comunhão.

Mesmo que nunca olhemos, nos olhos, para dentro da alma, ao rés da consciência, o ser do outro que connosco comunga ele está aí, nessa infinidade de esferas cristalinas, em reverberação contínua de sóis e diamantes e tanto faz ver como não ver.

Às vezes, de noite, quando o silêncio possível ecoa nas cavernas do ser, pressinto uma alvorada, plena de vozes e sinais, adejos de pássaros e fumos esfarrapados de fogueiras desertas, e sei, e sinto que por ali viajaram multidões aladas de prodigiosos entes, os efémeros fogachos da afinidade, os lampiões fenecidos da irmanação.
Nem sequer os procuro, deixo que o mistério prossiga a sua rota intangível, sei que afastar a fímbria do manto da verdade, ou da luz, ou do saber é profanar o segredo, invadir o mistério, despir o sortilégio da inefável roupagem com que se vai revelando e ocultando, sempre revelando e ocultando…

Pairo nos transes do estremecer matinal, de olhos cerrados, um momento ou dois, e então ouso abri-los para o dia, ouso erguê-los para a vastidão cerúlea do mar ou do firmamento pois sei que, invisíveis à cupidez da turba, comigo vogam as minhas multidões.

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