A tragédia pode constitur-se em vocação humana. Há certos seres cuja dominante interior se traduz num impulso de abertura aos territórios indizíveis. A plenitude excepcional onde lhes apraz habitar é derramada a esmo sobre universos alheios, no desejo de os atingir de forma profunda e definitiva. Cedo, porém, tudo se dissipa numa confluência estranha em que os mais subtis miasmas sobrevoam e pairam, por fim, difusos e alheios, nas zonas penúmbricas do paradoxo.O relevo da existência torna-se, de imediato, absurdo, e o enigma aflora nas margens do ser. A trama tecida nas horas ímpares da confiança jorrante afunda-se nos abismos duma orgia sem continuidade espácio-temporal.
Tais seres são predominantemente trágicos na medida em que se enovelam no delírio da inconsciência úbrica e lhe dão um estatuto de supremacia quase absoluto; e, nas regiões da embriaguez onde passeiam a sua ânsia fecunda não existem fronteiras para o possível. A infinitude, padrão sublime de todo o seu percurso existencial, nada conhece das dimensões lineares dos humanos comuns; daí que o ser trágico não admita entraves ao derramamento do seu próprio excesso. Porém, esses momentos grandiosos de êxtase místico e de alegria primordial na superabundância da reconciliação divina encontram, no silêncio das lágrimas, o seu complemento essencial. O ser trágico experimenta, no próprio âmago, as confluências subtis do jogo dialéctico, pois, continuamente, a descida aos abismos funciona como condição da subida ulterior aos cumes orgiásticos da sublimidade.
A aura trágica evola-se destes entes, pende-lhes sobre a cabeça feita coroa de martírio e de realeza: é essa a causa do fascínio que exercem sobre os outros. A maioria das pessoas, apesar de nada entender destas subtilezas, visto viver à margem de todo o exercício de auto-aprofundamento, é sensível, contudo, a qualquer emanação de mistério, ainda que o móbil seja, não raro, uma curiosidade desprovida de fundo. E toda a sedução vive do pressentimento de maravilhas ocultas e do desejo de as desbravar, para possuí-las. Então, quando um desses seres, marcado pela fatalidade trágica, percorre as dimensões vulgares, onde o ócio abundantemente espalha o seu vício coleante, o humano comum sente-se agitado, sem lograr, todavia, especificar em si a causa desse tremor recôndito. Porém, rende-se e absorve-se no mistério, porque só é fascinante o que perpassa, sem se deter, nas redes opacas da conceptualização.
Por outro lado, há um perigo latente imbricado na emanação trágica; mas, mesmo o homem vulgar ama, se bem que episodicamente, o mergulho na inquietude, onde se experimenta a si próprio e encontra a expansão do eu. A embriaguez pressentida na postura, ainda que serena, da personagem trágica é um íman poderoso, capaz de levar ao rubro e fazer assumir atitudes heróicas o homem mais propenso à cobardia e ao conformismo.
Esse amor pelo enigma trágico é, no entanto, circunstância meramente episódica; dura, enquanto permanecem os efeitos da poção miraculosa, subsiste, enquanto se mantém o negrume extasiante da noite onde se diluem todas as diferenças. Porém, após a inconsciência delirante (possível, apenas, no intervalo fugaz entre duas consciências) que a droga miraculosa produz na mais banal das criaturas, ele regressa dessa terra de ninguém: é a alvorada, o sol anuncia o brilho diurno, castrador da identidade onde o ser havia experimentado, no próprio sangue, a alegria superior da fusão primordial. O homem trágico, nas espirais grandiosas do seu amor inflamado, supunha haver atingido a condição sublime do próprio encontro, na apoteose do êxtase divino; com ele pactuou, porém, a inconsciência frívola de um ser de outra espécie, momentaneamente cingido pela luz radiosa dos imortais. E então, em lugar da serenidade divina, possível após o clímax da paixão, vai confrontar-se com as luzes pálidas da indiferença, reflectidas por um sol moribundo, na face dos que se lhe renderam nas horas de fascínio. E cai, dessas regiões de prodígio inenarrável, doravante ser telúrico, aprisionado à ingente cadeia de estar vivo. Mas ele reencontra-se sempre – porque o homem trágico tem, mais do que todos os outros, a aspiração profunda à serenidade que nenhuma contracção perturba: ela é-lhe profundamente cara, após o exercício subterrâneo da angústia. É condição do trágico e seu destino inalienável, no entanto, jamais se deixar aquietar nesse lago que, aos poucos, irá assumindo, a seus olhos, a repugnante textura de um charco estagnado. Sentir-se-á agredido pelo coaxar torpe das rãs e poluído pelo visco limoso que qualquer água parada engendra. Então, num retorno infindável, voltará a sorver a taça fumegante até à última gota.
Falamos do homem trágico e enquadramo-lo numa espécie à parte, constituinte, ela própria, de uma sub ou supra-humanidade; ora, não é exactamente assim que devemos concluir.
A dimensão da tragédia é inerente ao próprio homem, é da vertigem convulsiva que a História vai arrancando as linhas directrizes com que moldará o equilíbrio dos tempos futuros; é preciso que uma geração se dilacere para que o devir se apresente estável e benéfico. Mas, a paixão pela ordem, a comodidade obtida através de padrões previamente estabelecidos, aniquila, temporariamente, o teor excessivo, subjacente à natureza humana, fazendo-a crer no eterno jardim das delícias, sem sombra de corrupção ou desordem. É por isso que a nossa época vive um aparente marasmo, onde os olhares se desviam dos mistérios e a aura trágica parece definitivamente contida no colete de forças de uma tecnocracia plenipotenciária. Porém, não há dúvida quanto à gravidez deste mundo, mergulhado numa inconsciência onde a si próprio se afunda e se limita; e o parto já se anuncia através de um sem-número de sinais inequívocos. Esta paz que o horizonte devolve está carregada de promessas guerreiras e o silêncio pétreo da montanha está a ponto de desfazer-se em lava fumegante. A tragédia paira, suspensa, nas linhas de confluência do discurso aberrante da multidão à procura, desesperada, de um centro; vislumbra-se nas opções absurdas de uma humanidade que perdeu o seu carácter. Pelo ar vagueiam os ecos perdidos de uma música estranha, onde os paradoxos se transformam na lógica das maiorias. Dir-se-ia que a História se deteve numa encruzilhada, bifurcação dilacerada de todos os caminhos possíveis, e que o rosto se lhe diluiu numa insuportável ausência de expressão. E estes são alguns dos sintomas inequívocos da tragédia latente.
Falta, porém, ao mundo actual a figura que devolverá à humanidade a sua lídima natureza e forçará a História a arrancar-se da sonolência que lhe atenua o dinamismo, próprio de qualquer substância vivente; enquanto ela se acoitar, absolutamente submersa, nas brumas da identidade primeva onde os deuses lhe outorgam poder absoluto, a vida deter-se-á num marasmo vizinho da morte. É apanágio, no entanto, da odisseia trágica ser, precisamente, a encarnação difusa de um prenúncio, a vaga concretização de um presságio. E, no poder convulsivo dessa violentação dialéctica logrará despertar a crua sanguinolência da verdade. Verdade essa que ostenta o carácter versátil da incerteza; porém, nas regiões trágicas onde nos movemos, toda a verdade é bifurcação de angústias, feita destino e paradigma.