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Cultura, Literatura e Filosofia

OS MOODY BLUES E AS PROFECIAS PARA O NOSSO TEMPO

 

“In The Beginning”

[First Man:] I think, I think I am, therefore I am, I think.

[Establishment:] Of course you are my bright little star,
I’ve miles
And miles
Of files
Pretty files of your forefather’s fruit
and now to suit our
great computer,
You’re magnetic ink.

[First Man:] I’m more than that, I know I am, at least, I think I must be.

[Inner Man:] There you go man, keep as cool as you can.
Face piles
And piles
Of trials
With smiles.
It riles them to believe
that you perceive
the web they weave
And keep on thinking free.

 

Regina Sardoeira

Este excerto de um álbum dos Moody Blues, On the Threshold of a Dream, do pretérito ano de 1969 (quem se lembra? Quem conhece?), é o início de uma espécie de ópera em rock sinfónico, também chamado rock progressivo, cujos cânticos é necessário interpretar para ser possível dizer que “se conhece”. Eu ouvi-o até à saciedade, não em 1969 mas alguns anos depois, já na segunda metade dos anos 70, do século XX, e decorei todas as palavras, possivelmente sem lhes captar o sentido profundo, mas percebendo que havia ali algo de extraordinário.
Há alguns dias fui activar um velho gira-discos e procurei a obra desse grupo lendário. Tenho-a em discos de vinil e também em alguns CDs, mas foi o vinil que motivou o meu acto de, com o cuidado possível, colocar a agulha no início do disco e esperar, com alguma ansiedade, o início – “In the beginning, precisamente, o acto de abertura do álbum “On the threshold of a dream”.

Percebi que toda a emoção que costumava sentir, quando era uma jovem universitária, despertava por inteiro na fruição das palavras ditas, num diálogo a várias vozes, por elementos do grupo, que eram, na época: Mike Pinder, Justin Hayward, Ray Thomas , Graham Edge e John Lodge.
Traduzi o excerto e eis o que encontrei:

No Início

[Primeiro homem:] Eu penso, Eu penso que existo, portanto eu existo, Eu penso.
[Poder estabelecido:] Certamente existes, minha estrelinha brilhante
Tenho milhas e milhas de pilhas de ficheiros
Belos ficheiros fruto dos teus antepassados
E agora para te enquadrar
No nosso grande computador
Tu és tinta magnética.

[Primeiro homem:] Eu sou mais do que isso
Eu sei que sou
Pelo menos, eu penso que sou.

[O homem interior:]
Aí vais tu, homem, mantém -te tão calmo quanto puderes.
Enfrenta pilhas e pilhas de julgamentos
Com sorrisos.
Irrita-os acreditar que tu percebes
A teia que eles tecem.
E continua a pensar livremente.

O texto começa com o célebre “cogito” cartesiano : Eu penso. Logo eu existo. E, de imediato, o “poder estabelecido” traduz a consciência solitária do indivíduo pensante que, só por isso , crê existir, pela parafernália de ficheiros e mais ficheiros de muitos antepassados, pela necessária acomodação ao grande computador e a redução do indivíduo a…”tinta magnética”!
E o protesto tímido, “sou mais do que isso”, e a dúvida, “pelo menos penso que sou…”
E lá do fundo, o repto, “enfrenta os julgamentos com sorrisos e continua a pensar livremente”.
Estudei este “In the begining” dos Moody Blues, de novo, analisei , também de novo, a capa do LP, uma obra de arte de Philip Travers, em tons de azul com as correntes de uma máquina cruel apanhando e destruindo a natural beleza do mundo, e vi como há 63 anos estes homens muito jovens anteciparam, de modo lírico e estético, o mundo de hoje. Na altura, o texto “In the begining” era uma visão utópica subjacente a um mundo ainda colorido e saudável; hoje é a perfeita descrição de um tempo em que não passamos de ficheiros ou dados de um gigantesco computador que, em breve, se autonomizará por completo reduzindo -nos à “tinta magnética”, metáfora perfeita da total e absoluta desumanização.
O simples acto de ouvir música já não é como antes: os LPs de vinil são, há muito, obsoletos, os CDs entraram muito velozmente em declínio, substituídos por outros suportes invisíveis e digitais, a música é armazenada em ficheiros e, digam-me: quem ainda presta atenção às obras de arte que foram as capas dos álbuns dos Moody Blues e de muitos outros artistas?
“Tinta magnética”, eis o que somos, rebanhos conformistas de reses todas iguais, música ou literatura usadas como produto, comercial e facilmente descartável. E o grande computador, metáfora para o “establishment” de que fala o texto, rodeia -nos pronta a massacrar-nos nas suas rodas dentadas e a submergir o que nos resta de humano no abismo.

 

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