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FOME, PESTE, GUERRA

Regina Sardoeira
“O míssil ucraniano que atingiu a Polónia e fez duas vítimas mortais e outros estragos, caiu ali por engano: logo, está tudo bem!
Hoje decidi ver o Primeiro Jornal da SIC. Fiquei atónita, já que o tema era o conflito entre a Rússia e a Ucrânia, quando ouvi o jornalista anunciar, com o ar sério que lhe é apanágio: : “Começamos pela notícia que traz alívio a grande parte do mundo.”
Durante escassos segundos pensei, ingenuamente: A guerra acabou! Mas imediatamente fui esclarecida: “É ucraniano o míssil que atingiu a Polónia quando respondia a mais um ataque russo.”(E em rodapé: míssil que matou duas pessoas era ucraniano.)
Antes de ouvir a análise dos demais intervenientes da situação que gerou tão grande alívio no mundo, detive-me nestas informações: Como pode a queda de um míssil numa exploração agrícola da Polónia, matando duas pessoas, ser causa de alívio no mundo? Mais: como pode a queda de um míssil, onde quer que seja, ser causa de alívio para quem quer que seja?
Vejam como estão invertidos os valores, reparem como a parcialidade abjecta invadiu o mundo!
Claro que sendo a Polónia um país da NATO, se o míssil fosse russo, o conflito, para já, aparentemente confinado aos dois países em guerra, desencadearia o envolvimento da NATO e logo uma guerra em grande escala. Mas como , segundo especialistas, o míssil partiu da Ucrânia e atingiu a Polónia, por engano, quando se dirigia à Rússia, tudo ficou, bruscamente, absolutamente límpido, legal e impoluto.
A seguir reflecti: Mas, tal como a Rússia, a Ucrânia não é membro da Nato!
E logo ouvi diversos responsáveis políticos à escala mundial plenos de afabilidade perante o ataque ucraniano à Polónia – mas foi por engano ,por isso está desculpado! – e afirmando , por fim, que o facto de este míssil ter sido lançado pela Ucrânia e ter atingido uma região da Polónia é, afinal, culpa da Rússia a quem era dirigido! E ouvi, de novo, a afirmação de que esta guerra e a alegada invasão da Ucrânia pela Rússia é ilegal , como se outra guerra qualquer ao longo da História, pudesse alguma vez ter sido legal!
Reparem bem: duas pessoas morreram, houve destruição e medo por parte de quem assim foi alvo da queda de um míssil, mas como o alvo era a Rússia, foi a Ucrânia que o lançou e caiu ali, por engano, tudo está perfeitamente desculpado!
Estou a ver milhares de portugueses a verem e ouvirem tais enormidade, transmitidas à hora do almoço, e a acenar com a cabeça afirmativamente enquanto palitam os dentes: Têm razão, isto não tem importância e a Ucrânia não tem culpa nenhuma, a Rússia sim!
Já não consegui ver/ouvir mais notícias. Vislumbrei o presidente dos EUA, com um ar aparvalhado a dizer não sei o quê, vi que alguém lançava um manto protector sobre a Ucrânia (que lançou o míssil caído na Polónia, fez vítimas e destruição, mas foi sem querer), vi o papa num esforço enorme para se movimentar mas que também comentou o acontecimento que aliviou grande parte do mundo e pronto: nem mais um segundo de noticiário.
Neste momento da História do mundo e dos homens, uma tal inversão de valores não deveria já ser, para mim, alvo de surpresa: a manipulação é de tal ordem que, num ápice, o preto passou a ser branco e vice-versa, as pessoas funcionam como computadores formatadas para sentir e pensar isto e aquilo e mais aquilo que convém ao sistema e, efectivamente, já não há volta a dar! Mas, ainda assim, quando, descaradamente, deste modo noticiam um acontecimento já com o juízo de valor acrescentado para que ninguém possa provar ou admitir o contrário, quando isto acontece e eu vejo e oiço o sorumbático jornalista, sorumbático mas visivelmente satisfeito com a notícia que divulgava, a transmitir o discurso com que o formataram, não sou capaz , ainda, da atitude da indiferença.”
Este foi um texto que publiquei há uns dias no Facebook e mereceu alguns comentários: uns, favoráveis, outros, depreciativos e reprovadores.
Tenho alguma dificuldade em compreender como é possível haver pessoas que estão tão bem informadas acerca de uma guerra de que nos chegam variados ecos sem que nenhum deles possa ser, efectivamente, comprovado. As imagens que os meios de comunicação divulgam, as análises dos “especialistas”, os discursos deste e daquele a propósito e tantas outras balbúrdias para mim não chegam! Mas são suficientes para muitos, o que me decepciona bastante.
Estou a ler um livro fascinante, intitulado ” Homo Deus,  A brief history of tomorrow” de  Yuval Noah Harari e, para além de imensas análises importantes que a obra faz, o autor destaca como factores perenes na desestabilização da humanidade e inerente impossibilidade de alcançar a felicidade, três vertentes dominantes: a fome, a peste e a guerra.
Estamos no século XXI, é um facto. Mas, tal como antes, desde o início da História, estas três calamidades persistem.
Logo, a guerra, seja esta, entre a Rússia e Ucrânia, seja qualquer uma das outras, num esforço retrógado de análise nada difícil de efectuar, surge de uma necessidade humana, vinda do fundo violento que constitui o homem. Existe a guerra objectiva, esta em que se disparam mísseis, mas também a guerrazinha quotidiana na qual os homens competem. E são os países em disputa por títulos de futebol, os artistas da música que lutam para figurar nos hits, os escritores que buscam ser os mais vendidos, os mais lidos, os angariadores de prémios, as crianças nos seus jogos voltados para a competição.
A fome, sendo o corolário da guerra, é ainda o resultado da apropriação criminosa dos recursos da natureza e feita por uns, em detrimento dos outros, e grassa no mundo em maior ou menor escala.
A peste objectivou-se para o mundo actual nos últimos anos, num tempo em que a ciência deveria já ter resolvido tal problema : porque há meios para isso.
Portanto de pouco adianta tentar perceber quem tem razão, não é relevante acusamos um lado – por exemplo, a Rússia – e apiedarmo-nos dos outros – por exemplo, os ucranianos. Esta guerra é a resposta ao trinómio de que fala Harari e haverá outras por outras razões ou pelas mesmas, no mesmo local do mundo ou em qualquer outro. E essas guerras existirão na justa medida em que o homem não percebeu o que é a felicidade, muito embora muitos se digam felizes,  muito embora nunca, como agora, se use tanto essa palavra com absoluta insensatez.
A fome virá, efectivamente, para nós, já se anuncia no elevado custo de vida dos bens essenciais à subsistência, mostrando- nos que não é apenas no terceiro mundo que faltam os recursos mas também aqui, nesta Europa aconchegada e razoavelmente equilibrada (?). A fome espreita-nos das prateleiras dos supermercados onde, o que dávamos como garantido de acordo com o respectivo nível de vida, deve ser agora questionado enquanto essencial, decerto abandonado ou reduzido ao mínimo. Eu acredito que a fome generalizada chegará a curto prazo, pelo menos para mim e para muitos outros (a maioria?) que vivem de um salário somente.
A peste está presente e tem muitas faces, nem é necessário evocar o Covid: está aí a SIDA, o vírus influenza, o cancro, a diabetes e tantos outros males cuja incidência talvez não seja exaustivamente contabilizada ( ou revelada às pessoas) mas que não pode ser negada como um facto.
A humanidade provou à saciedade que não sabe ou não quer viver pacificamente; provou que aceita as competições como lema de vida e assim educa as suas crianças; provou que não sabe usar os recursos da natureza, achando normal a apropriação indevida dos grandes consórcios e impérios do consumo; provou que aceita o império farmacológico que não cura as doenças mas as controla por um lado, criando outras, no reverso, e matando em vez de curar.
Enquanto cada homem, individualmente, não perceber que sanar estes males de todos os tempos e tão cruéis e desnecessárias no nosso século que pouco mais à frente vai do que a era medieval, em que as monarquias usurpavam para seu benefício tudo o que existia no reino, sujeitando os súbditos ( e escrevi esta redundância de propósito) ao terror, à fome e à doença está ao seu alcance. Temos mais tecnologia, claro, vivemos de outro modo: mas somos, de facto, medievais.
E então, o meu artigo sobre um pequeno excerto de um telejornal, tinha, subjacente, esta análise mais funda e não a defesa da Rússia (como posso defender a prepotência de um governante que não vacila na teimosia absurda de subjugar outro país, sejam quais forem as consequências para o seu povo e para o resto do mundo?) ou a complacência pela Ucrânia ( como posso ser favorável a um governante que enfileirou na guerra e finge estar na luta com as suas vestes verde militar, enquanto pede armas continuamente e vê as cidades e as gentes do seu país em colapso?).
Se há guerra é na exacta medida em que um provocou e o outro fez peito, guerreando igualmente. Algum deles tem razão? Definitivamente, não.
Fronteiras? Territórios delimitados e reconhecidos pelo direito internacional? Etnias? Comunidades rigidamente mantidas à sombra de uma bandeira? Para quê? Porquê?
Oiço falar por estes dias no campeonato do mundo de futebol. Muito embora não tencione ver um único jogo e pouco ou nada me importem as prestações do grupo português, vejo que está em curso outra espécie de guerra, lá longe no Qatar , e soube há pouco que essa espécie de rei que em república dá pelo nome de presidente e é o nosso,  vai, enquanto chefe de estado (e logo à nossa custa!) assistir em pessoa e como símbolo dos portugueses (que não eu) a um certo jogo dessa competição. Deveria ir? Definitivamente, não, somos pobres a empobrecer! É um orgulho? Definitivamente, não, outra vez! O futebol é um jogo estúpido para estúpidos, como todos os jogos: basta conhecer as regras e praticar para ser exímio, não há futebolistas heróis e acreditar nisso é uma aberração! Tenho imensa vergonha em ser obrigada a resignar-me ao facto de que a grande lenda e imagem do meu país é, tão somente, um certo jogador de futebol.
Concluindo: escrevi sobre uns breves minutos do início de um noticiário e teci considerações oportunas. Porém, a rasteirice que domina muitas mentes viu o que não estava lá e mais: eles sabiam que os russos tinham 96 mísseis apontados à Ucrânia! 96, exactamente, não 95 ou 97! Quem esteve a contá-!os? Quem divulgou a contagem? Quem viu os mísseis apontados?
Fome. Peste. E guerra. Estão aqui, sempre estiveram e vão estar no futuro: porque a humanidade pode mudar esta equação, chamemos-lhe assim, metaforicamente, mas, subjugada aos donos do mundo que nem sequer têm um rosto evidente, nada tem feito para apagar, uma após outra, estas ignomínias e ser o Homo Deus que deve seguir-se ao Homo Sapiens cujo reinado sobre a terra falhou miseravelmente.

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