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O NATAL FEITO DE MUITOS LOGROS

Regina Sardoeira

Deixem-me dizer uma coisa. Já gostei do Natal. Mas agora, quando percebo que a época se aproxima e vejo nas ruas, nas lojas, na azáfama das pessoas, a marca de um surto de agitação, tendente ao consumo, e vejo esta cidade onde vivo engalanada num excesso de fantasia luminosa, tenho uma vontade enorme de adormecer já e só acordar depois da turbulência. Sim, da turbulência, porque o Natal, é o o somatório de muitos ruídos, muitas cotoveladas, longas filas de espera para tudo e um intenso apelo à compra, à prenda, à procura de iguarias sempre iguais ou aqui e ali pautadas por um certo exotismo. Fico enfadada, tanto mais que, por razões familiares e logo sociais, me vejo enredada no mesmo périplo de lojas, de programação, de listas…e não poso ignorar a data.
Dir-me-ão que é um sacrilégio, que o Natal celebra o nascimento de um homem divino e portanto de um deus ou semideus nascido de uma misteriosa união entre uma menina e uma entidade invisível e logo de um milagre. Dir-me-ão que uma tal data se tornou icónica pelo seu halo de misticismo e também porque uma série de factores conduziram esse menino, semi-homem, semi-deus, a um certo destino trágico, difícil mesmo de entender racionalmente, no termo do qual o assassinaram cruelmente no mais humilhante dos suplícios. Dir-me-ão que essa morte não o foi, de facto, porque passados três dias ele apareceu, deixando vazio o túmulo e corporizando-se aqui e ali para provar a sua divindade . Muitos repudiaram semelhante conjunto de histórias misteriosas, mas muitos mais acreditaram na autenticidade de um homem que, segundo certos relatos, se dizia Deus porque era filho dele (e do homem, também, porque nasceu como todos nascem, como todos cresceu, como muitos falou, imbuido de um espírito misterioso e incompreensível aos homens do seu tempo).Esses, que acreditaram na saga do Cristo, nascido de uma mãe virgem e morto na cruz, fundaram uma religião cujo alcance é planetário e que mudou o calendário, dando origem a uma nova era.
Há certos dados históricos, bastante rudimentares, porque ele foi humilde, era filho de gente humilde, numa terra pobre ocupada pelo império romano, e pouco ou nada se sabe acerca do homem Jesus. Mas relatos posteriores, escritos por homens que tão pouco o conheceram para testemunhar o que contam, dão -nos a informação, aquela informação validada pela igreja enquanto outras foram ocultadas, e é por ela que se perpetua a celebração – esta, do Natal ou nascimento, e as outras, periódicas ou diárias cujo eco vai repercutindo.
Nada posso afirmar quanto às crenças humanas e às certezas com que se foram construindo rituais múltiplos e múltiplas celebrações; e nada posso negar, também, porque fui criada nessa atmosfera que também me moldou de várias maneiras.
Por isso, procuro viver o Natal numa interioridade feita de uma espécie de crença adquirida quer nos Evangelhos, quer na História de Cristo de Giovanni Papini…(e em muitas outra obras , mesmo de carácter científico, onde o mistério irradia como se fosse a centelha de uma verdade a revelar). Mas este Natal faiscante de luzes de gosto duvidoso, estes encontros familiares quantas vezes urdidos na obrigação, esta corrida ao consumo em busca de bagatelas, estas imagens contraditórias onde pontifica um absurdo Pai Natal absolutamente alheia ao menino-deus de que a religião se apossou, nem sempre da melhor maneira, e os banquetes e os sorrisos feitos de encomenda e tanto, tanto mais que seria moroso referir, fazem-me desejar que aconteça um súbito hiato de tempo que me dispense da tradição, apenas desta tradição vivida ao contrário, feita de muitas profanações.

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