Cultura, Literatura e Filosofia

CONFIDÊNCIAS

Regina Sardoeira

Enquanto passeamos por esta alameda e não nos perturbam quaisquer inquietações, como se vivêssemos um pequeno momento subtraído ao tempo – e, suponho que concordará, são raros estes hiatos na era actual! – deixe-me confidenciar-lhe alguns dos meus pensamentos mais recentes… não gosta de confidências? Pareceu-me sentir um frémito de desapontamento no desenho dos seus ombros… enganei-me? Mas é claro, todo o nosso corpo fala, porque não poderiam, os ombros dizer, também eles, qualquer coisa? Então aceita a confidência? Repare, eu compreendo-o, as confidências podem constituir-se em peso para quem as recebe, funcionamos como uma espécie de saco de lixo… ah, agora encarou-me …e até parou… porquê? Repugna-o que lhe fale em lixo? Mas olhe, não fique perturbado, em geral os pensamentos que alijámos de nós não são o melhor que temos…Continuemos, então, o nosso passeio. Observe o desenho da avenida, veja como a simetria monotoniza a paisagem… ah, o homem, e esta tendência para o ângulo recto! Agrada-lhe o ângulo recto? Bem, claro, há gostos para tudo…quanto a mim, prefiro acima de todas as figuras, o círculo! Essa confinação de pontos em que o fim toca sempre o princípio e o princípio remete inexoravelmente para o fim… a confidência?! Ah, bem vejo que não se esqueceu… e, afinal, quer saber os meus segredos! Já reparou como somos ávidos do íntimo dos outros? Até há pouco sentia-se aflito com a simples ideia de uma confidência minha e agora já se inquieta porque eu divago…

Ainda temos tempo, não olhe o relógio com essa preocupação… não lhe dizia eu há pouco que vivemos um hiato subtraído à angústia do passar irremissível do tempo? Aliás… será que passou, de facto, algum tempo? Ah, o relógio, bem sei, ele tem um pequeno mecanismo que ilude o vazio…  o seu relógio diz-lhe que faltam cinco minutos para o comboio? Viremos então, nesta esquina… eis a estação… estuguemos o passo… não vê que se perder este comboio terá que pernoitar na cidade?

Estranho, sabe? Não contava encontrá-lo neste lugar, decididamente ainda me reserva surpresas, muito embora nos conheçamos há anos… mas será que conhecemos? não, não me importo, fume à vontade! Afinal quem sou eu para ousar restringir-lhe a liberdade? Ah, ainda se lembra da nossa última conversa? E quer que finalmente lhe revele a minha confidência? Pois bem, é simples! Mas venha daí, o cheiro a cerveja começa a nausear-me e, se reparar bem, uma nesga de azul prenuncia uma aberta… por isso, e uma vez que já não vai beber mais, que me diz a passearmos um pouco?… Agora fez-me rir com esse bocejo… já percebi uma ponta de tédio no seu ar sonolento… tanto melhor se se deixar inebriar pelo ar fresco…. Viu? Concorda comigo: não há nada como deixar o corpo em plena liberdade… é o sinal para o cérebro começar a engendrar pensamentos…. Soube que viajou para o estrangeiro, percebi a sua ausência nos lugares habituais…Paris? Claro, Paris… oh lá, lá! Bem, percebo-o, não franza desse jeito as sobrancelhas eu vou dizer-lhe.

Sou um homem vivido como sabe, entrei há pouco na quarta década da minha existência, vi e senti demasiado e o que é pior sofri toda a gama de decepções…Não, não pare e, por favor, não me olhe assim… bem vejo que é mais jovem… ainda acredita, perpassam-lhe no desenho do rosto, no lume dos olhos todas as expectativas…. Se tenho expectativas… eu? Tive, caro amigo, toda a vida me alimentei delas, toda a vida depositei no ser humano a mais genuína das confianças… mas um dia, um daqueles dias em que a lucidez parece acometer-nos numa explosão súbita… ah, vejo que conhece essa sensação de inebriante clarividência… pois foi assim mesmo: abri os olhos, lancei-os para trás de mim e só encontrei despojos… quer mesmo saber o que decidi fazer daí em diante?

Ah, ainda bem que concorda comigo quanto ao itinerário a seguir… não vê que, decididamente, o sol abriu toda a carapaça das nuvens? Não, não me esqueço do que estava a ponto de confidenciar-lhe… mas repare, o que vou dizer-lhe é a síntese de uma tragédia… Acontece que não posso, nunca poderei criar laços seja com quem for, não acredito nas ligações, deixei de esperar… há pouco tempo ainda – um mês…quem sabe? – parecia-me possível enamorar-me, acreditava que o encantamento poderia muito bem ser o prenúncio de uma relação sólida… mas, bruscamente, como se tivesse levado um soco no âmago de mim percebi que tudo é embuste… Qual encantamento! Sensações epidérmicas, uns arrebatamentos e eis tudo o que pode esperar-se! Ah, está cansado! Bem vejo que arrasta os pés e que a sua respiração se tornou arfante… como queira, paremos aqui! Apesar do cansaço, não quer ir embora ainda… muito bem, dir-lhe-ei tudo em poucas palavras: em vez de ceder à magia do enfeitiçamento, que mais não é que a explosão dos sentidos, em vez de me deixar arrebatar pelo poder das sensações futuras, antevendo a felicidade, o paraíso, termino tudo ao primeiro fulgor… que me diz? Não diz nada? Considera-me cínico? seja, aceito o epíteto mas espero que possa entrever as vantagens de uma tal postura: não sofro, não faço sofrer e o que me apraz sobremaneira não uso os outros, não os amarro a mim…

Não, caro amigo, bem vejo que não me entendeu. Eu não quis dizer-lhe que os homens são incapazes de amar, não quis negar em absoluto a possibilidade de um lídimo sentimento de amor…. Pedi ajuda a Camus… e daí? Se sou um desesperado…? Claro, é isso… sou, confesso! Não acredito que se deitem no chão por mim, não creio que alguém o tenha feito ou possa vir a fazê-lo… Fala-me dos pais?… Da mãe, principalmente? Sim, claro, desse modo usamos conceptualizar um tal  amor… mas oiça e deixe lá passar o cinismo: não lhe parece que os homens ainda fazem filhos pela pior das razões? Por aquela que, exactamente, nada tem a ver com o futuro indivíduo, mas ainda e só com o acto…não, não franza a testa desse modo, nem se agite tanto na cadeira… sabe, o acto sexual é o propulsor da paternidade e, bem o sabe, não meta a cabeça na areia! não há nesses momentos qualquer sombra de filantropia… ou de altruísmo… e chama a isso amor? Chama?! Bem sei, quando o praticamos (ah como eu detesto usar esta palavra neste contexto!) dizemos, repare bem, dizemos: FAZER AMOR! E eu ponho-me a pensar se isso é coisa que se faça, se é mesmo uma acção, uma espécie de exercício de estilo ou… ri-se? Porque será que estes assuntos desencadeiam inevitavelmente o riso? Pensando bem trata-se do mais risível dos actos humanos… quando não somos nós os envolvidos! Ora visione! Bem, pela sua atitude, vejo que entendeu onde quero chegar… Agora repare: desse acto hediondo nasce uma criança, que durante anos não suspeita sequer do que a fez vir a este mundo… e, mesmo quando finalmente descobre, tem dificuldade em imaginar os contornos da cena que a originaram…. Estou a ir longe demais? Ofendo-o? Meu caro amigo, a realidade é brutal e nós obstinamo-nos em suavizá-la com metáforas líricas… Sabe, às vezes penso que os filhos nos abandonam exactamente porque deixam de suportar a imagem atroz dos pais que os fizeram… no momento em que os faziam! Não é isso? talvez não seja, de facto, mas quanto a mim, digo-lhe francamente: fazer amor não tem nada a ver com amor, é uma selvajaria, uma guerra! Dois seres enovelam-se, esperneiam, gritam, esfalfam-se, agonizantes, como se estivessem às portas da morte, massacram-se abominavelmente…. Pronto, calo-me, decerto não tenho o direito de ferir a sua susceptibilidade… mas… pense bem caro amigo, pense… verá que um dia… quem sabe? Compreenderá…

EM CIMA DO SICÓMORO

Deixem-me interromper a vossa conversa pérfida, esses arroubos insensatos de insensata sapiência, porque há tempos que vos oiço daqui, desta casa de árvore de cuja existência nunca suspeitastes e há tempos que as lágrimas me escorrem pelo rosto sem razão aparente, mas correndo apesar de tudo. Ter-me-ei tornado um rio, uma torrente?

 Nada sei dessas significações que vos suportam o ócio, apenas sei que, ao ouvir-vos, me veio uma inefável tristeza que, imediatamente, pendurei num sorriso, mas que por nada deste mundo aceitou tal condição; e foi assim que uma primeira lágrima embaciou o meu olhar até há pouco duro, e as outras vieram como se nada mais pudesse travá-las. Digam-me, ó homens circunspectos que falais para dentro de vós, sem pensardes nunca no outro, que teceis um monólogo a que talvez outros ousem chamar diálogo, dizei-me, ó vós que tudo pareceis saber e que nada pareceis querer partilhar, o que hei-de fazer para abandonar este sicómoro onde me refugiei para não sentir, onde fiz com que aterrassem todos os meus sonhos e onde pensei ter encontrado a paz?

Em tempos, achei que havia conforto neste céu de ramagens exóticas e que a luz coada do sol no céu estremunhado seria capaz de saciar-me todas as fomes. Mas foi ele próprio. esse sol nem sempre pálido, quase sempre mordente como um golpe de faca, foi ele, na sua real soberania sobre a terra e sobre os seres, que me mostrou – já era noite – que outro ser vizinho meu que eu  nunca soube, ali viera procurar, não a mim, decerto, mas a outrem que dele fugira e de quem ele fugira, e depois viu-me e eu deixei que ele me visse e tudo ruiu no meu mundo construído no mais secreto dos santuários profanos…

Ah, senhores de chapéu, que agora vos abanais no rigor desta hora escaldante, que agora vos calastes como se a minha voz pudesse ser audível – eu falo para dentro do vosso coração – dizei-me, se puderdes, porque eu não sei se alguém pode, como aguentar o rigor deste sonho, que ousei trazer para o mundo real, para o verter de novo em sonho e fuga, como aguentar suster-me no seio desta divisão e sobreviver à insídia da dúvida?

Agarrai-me, peço-vos, a árvore verga ao peso insuportável da tortura que sou, e é um velho sicómoro das florestas tropicais habituado ao peso, erigido em fortes raízes.

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