Cultura, Literatura e Filosofia

DIALÉCTICA

Regina Sardoeira

Um homem morre um certo dia e leva consigo o segredo da vida. Ninguém jamais poderá equacionar o peso dos momentos decisivos ou adivinhar os pensamentos fugidios que lhe perpassam a mente no segundo derradeiro. Dizemos derradeiro, e nem tão pouco sabemos se este derradeiro será, de facto, derradeiro para aquele que morre, escapa-nos essa dimensão intangível, escapa-nos esse suspiro final, esse parar lento do coração, esse balbucio lento do cérebro que talvez não seja capaz de registar o instante final; e,  se achamos que existe um depois, um para além das fronteiras do corpo e das energias palpáveis da matéria, é na exacta medida em que a racionalidade, quantas vezes disfarçada de crença ou de religiosidade, recusa a finitude e prende-se de modo obsessivo ao prodígio da eternidade, feita espírito, esvoaçando etereamente na dimensão do infinito Conceptualizar a morte não é possível nunca, e, por isso, quedamo-nos, perplexos, defronte desses umbrais, misteriosos para nós, e no entanto naturais na dialéctica da existência e da vida, antítese propulsora de uma síntese criadora em que da terra nasce vida e da vida nasce terra. Acrescentamento, decerto chegará a haver ou talvez o próprio acrescentamento a que chamamos, muitas vezes, evolução, não passe do ciclo vicioso dos acontecimentos terrenos, esses que se desdobram à superfície de um planeta rolante. incansavelmente rolante em torno de si mesmo, incansavelmente rolante em torno do astro de onde recebe a luz e a seiva.

Um homem morre e passa a ser um rasto de memória, uma poeira de tempo, um pequeno traço entre duas datas-limite, um intervalo, sempre considerado curto, por mais extensa que tenha sido a duração, medida em anos, desse lapso de respiração, desses batimentos compassados de um músculo propulsor, corrente de vida, marcador de emoções

Um homem morre e escrevemos uma espécie de murmúrio reminiscente, onde as palavras são ecos de sons que ouvimos, de latejar de pulsos, de olhares derradeiros desse que outrora se ergueu, impante, para o âmago das coisas terrenas e acabou perdido de si como despojo para a terra e para os outros.  Nada mais pode acrescentar-se já que a dialéctica se cumpriu.

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