Regina Sardoeira
Iniciarei a minha crónica com uma citação de uma escritora que considero excepcional. Ela escreveu o seguinte:
“Acredito que os livros, uma vez escritos, já não precisam dos seus autores. Se tiverem alguma coisa para dizer, mais cedo ou mais tarde encontram leitores; se não, não…gosto muito desses livros misteriosos, tanto antigos como moderno, que não têm um autor definido, mas têm tido e continuam a ter uma intensa vida própria. Parecem-me uma espécie de milagre de uma noite (…). Os verdadeiros milagres são aqueles cujos autores nunca serão conhecidos…Além disso, não é verdade que a promoção é dispendiosa? Eu serei o autor menos dispendioso da editora. Até a minha presença vos pouparei.” (Prefácio do livro Crónicas do Mal de Amor de Elena Ferrante, por James Wood)
Um pouco adiante, no prefácio, James Wood transcreve outra das opiniões da autora, Elena Ferrante:
“(…) um escritor que faz publicidade aceita, pelo menos em teoria, que toda a sua pessoa, com todas as suas experiências e os seus sentimentos, seja posta à venda juntamente com o livro”
E o autor do prefácio prossegue, nesta linha de pensamento, dizendo:
“(…) a nossa língua trai-nos: hoje em dia vende-se triunfantemente um romance a um editor: há trinta anos, um editor simplesmente aceitava esse romance.”
Conheço Elena Ferrante há uns três anos e, desde então, já li seis livros dela. Procurei saber quem é esta escritora italiana, napolitana, presumivelmente, e percebi que ela nunca se deu a conhecer em pessoa e, portanto, nada é dito sobre os seus dados biográficos: ninguém sabe, ao certo, quem é esta escritora extraordinária. E o excerto da entrevista transcrito (e ela só dá entrevistas por escrito) explica, assim, semelhante anonimato.
Este (Crónicas do Mal de Amor, Relógio de Água, 2016) foi o último livro que li da sua autoria; e logo que deparei com as palavras dela, transcritas no prefácio, reflexo de um modo, considerado decerto excêntrico pela maioria, de se referir aos livros e ao anonimato do autor, soube que uma tal concepção veio inteiramente de encontro ao meu próprio modo de pensar.
Os autores vendem a sua obra, ou seja, vendem a sua pessoa, a sua imagem, a sua alma, se quiserem, a uma empresa – a editora – que as usa para ter lucros, produzindo um livro. O autor pouco ou nada ganha, em termos financeiros, nessa transacção, pois a sua quota parte é de 10% do total das vendas.
Podem ficar mais ou menos conhecidos e mesmo famosos, podem tornar os seus livros best-sellers, podem ser conhecidos a nível mundial e ganhar mesmo muito dinheiro com essa venda que fazem de si mesmos. Todavia, e de acordo com o valor intrínseco da obra, essa notoriedade significa muito pouco. Quem criou a ideia de que um livro, por ser best-seller e logo “mais vendido”, é, efectivamente, uma obra a levar em conta, uma leitura que é indispensável e que urge ler – por ser um best-seller? Quem transformou os livros, e decerto a literatura, num produto comercial em que o autor deve vender a sua obra, cedendo quase todos os direitos a uma empresa com fins lucrativos?
James Wood refere que : “hoje em dia vende-se triunfantemente um romance a um editor: há trinta anos, um editor simplesmente aceitava esse romance.” Eu nunca vendi e nunca venderei uma obra minha e sei, por experiência vivida, que há menos de 30 anos (foi em 2006) um certo editor aceitou simplesmente o meu romance e editou-o. Porque tive essa experiência digna e percebi, depois, que a editora que me publicou foi à falência e todas as outras que contactei a seguir me pediam um certo montante para editarem os meus livros, nunca mais publiquei (com uma única excepção que considero desprestigiante para a obra, mas que, de momento, não vem ao caso).
Decidi publicar agora. Os livros estão escritos, os livros falam com as pessoas, os livros são úteis e devem ser partilhados: será legítimo, será honesto até, uma escritora como eu sou, fechar-se em si mesma depois de escrever obras cujo teor aponta para a partilha, cujo conteúdo pode acrescentar algo ao mundo? Não o creio e, confesso, já esperei demasiado tempo.
Pouco importa que no dia do lançamento estejam cinco ou cinquenta pessoas, pouco importa que venda um ou cinquenta livros: as pessoas vão saber que a obra existe, vão saber de que modo poderão adquiri-la, se quiserem e, mais importante ainda, ela será publicada, constará do acervo literário da humanidade e, como diz Elena Ferrante se nela “houver alguma coisa a dizer, di-lo-á; se não, não”.
Pouco mais poderá ser dito, por mim, a este respeito. Como não tenho editora a quem pague para que torne a minha obra visível e, desse modo, permita a quem gosta de ler aceder ao livro, não terei outra solução a não ser realizar, eu mesma, esse trabalho: sem anonimato, sem pseudónimo, não ocultando a minha presença, como a Elena Ferrante (já é tarde para seguir este caminho), tentarei chegar aos presumíveis leitores.
E termino, citando, pela terceira vez: “(se nele) houver alguma coisa a dizer, di-lo-á; se não, não”.